Por ingenuidade, ainda que bem intencionada, já aqui escrevi várias vezes sobre a temática dos fogos florestais. “Fogo amigo”, “Fogo de Inverno”, “Quando o lobo é dono da floresta”, “Queima-me, que eu gosto”, entre outros. Achava que era útil.
Cabeças melhores e vozes mais autorizadas também.
O resultado? É o que está à vista na calamidade que aconteceu em Pedrógão Grande.
Em pleno Século XXI, dezenas de pessoas morrem num incêndio florestal num Portugal da União Europeia, que brinca às vacas voadoras mas é incapaz de fazer gestão corrente. Custa pensá-lo, escrevê-lo e ainda mais concebê-lo. Mas é real. Uma realidade mortal.
Não vale a pena discorrer sobre as causas da ignição e da propagação do fogo. Nem sequer sobre a resposta dada à emergência. Mesmo com uma Ministra da Administração Interna que é um marco histórico de incompetência para a função e uma estrutura de Protecção Civil que deverá responder perante a Justiça.
O problema não é deste Governo, nem do anterior, nem dos outros antes. É mesmo do regime enquanto todo. As chamas deste incêndio, somando-se às de todos os que há décadas o precederam, vêm iluminar tragicamente o falhanço de Portugal enquanto País.
Porque a culpa é de todos nós.
Entretidos no folclore da mão criminosa e dos tolinhos da aldeia, sem nunca querer conhecer os mandantes e o que sucede depois. Tolerantes para com os negligentes e as suas beatas janela fora, queimadas e demais tropelias. Foi sem querer, e isso desculpa tudo.
Indiferentes às questões de ambiente e de ordenamento do território, de gestão florestal e más opções de espécies, modelos de cultura, de construção da paisagem, onde o fogo é elemento intrínseco. Futebol, Fátima e Festival (o Salvador até doa os proveitos do CD, vejam lá!) é que é!
Apáticos ante a nomeação de titulares de cargos de decisão e gestão apenas por favor partidário, amizade ou laços de família, cuja incompetência e ignorância, condenam, nas más decisões que tomam, populações ao êxodo, à miséria e à morte. Primeiro os nossos, não é?
Coniventes com a corrupção (principalmente moral) que monta negócios obscuros – e até já descarados – em torno do combate aos incêndios, da transformação fundiária, do mercado da madeira queimada, o que seja. Clientes de especuladores, gananciosos, agiotas, que preferem manter na sua “propriedade” terrenos para os quais não têm qualquer ideia a não ser abandonar, entregar às empresas de celulose, ou talvez vender num qualquer esquema imobiliário, em vez de os entregar a quem queira trabalhar.
Um caos multifacetado de onde ninguém sai limpo.
A não ser as corporações de bombeiros. Não há palavras para descrever a abnegação e coragem com que partem para um combate desigual, onde têm noção de ser carne para canhão.
Agora vem o tempo da hipocrisia.
Desde o meramente bizarro e abjecto, como um bordel noticioso que manda a sua madame para fazer directos junto a cadáveres, ou promoção em redes sociais a troco de “donativos”, até à tremenda expiação colectiva do peso de consciência através de contas, concertos, linhas telefónicas (sobre as quais o Estado, abutre, cobra IVA), festas, caridadezinha.
Depois há as inevitáveis reuniões, estudos, estruturas de missão, lágrimas de presidenciais e ministeriais crocodilos, que daqui por uns meses, enquanto estivermos entretidos a discutir as decisões do vídeo-árbitro, estarão a fazer o que melhor sabem fazer: diarreias legislativas descoladas da realidade ou ao serviço de interesses particulares.
O problema nasce não de falta de conhecimento, nem de falta de gente capaz. Nasce do afastamento de um e de outra de todo o processo de decisão e de gestão, refém de um sistema partidário deserto de mérito.
Nasce da alienação de um povo inteiro.
Nasce do esvaziamento e morte das paisagens, que é desprezo, puro e duro, pelas gerações vindouras.
Porque só com projectos de vida, organizados de forma permanente e numa perspectiva inter e multigeracional, teremos zonas rurais vivas.
Para isso, tem que haver uma definição política e estratégica assente no conhecimento e animada pela determinação e coragem. Que não há, nem se vislumbra que venha a haver.
Insisto, é um problema de regime.
Podemos escrever, falar, gritar, que não passaremos de um coro de mudos, já que nada vai trazer de volta as vítimas do fogo florestal de Pedrógão Grande. Pior, começa a parecer que nada pode evitar a repetição de tal calamidade.
Ontem Pedrógão, amanhã Monchique, São Brás de Alportel, qualquer sítio. Separa-nos a distância do acaso, já que estamos por nossa conta.
Resta apenas uma profunda revolta.
Mas cada um sabe de si.
Afinal de contas, a Selecção joga na Quarta, e o Ronaldo, se marcar, vai dedicar-nos a vitória, dando-nos aquela aconchegante certeza de que vai tudo correr bem.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)