Uma cidade amiga das pessoas é uma cidade que convida as pessoas a andar a pé ou de bicicleta, a utilizar as suas praças, ruas e avenidas, com conforto e segurança, onde todos reconheçam quão bom é passar tempo no espaço público e que nele prefiram permanecer, ao invés de se recolherem às suas habitações.
Mas e por onde começar?
Primeiro, há que saber com que grau de convicção é que um executivo municipal quer que a sua cidade seja amiga das pessoas. Porque por muito que se queira, há todo um processo de análise crítica alicerçado no conhecimento, que é necessário empreender, para que posteriormente se implementem medidas, que transformem a cidade num ambiente democrático e amigo dos cidadãos.
Certamente não é com passeios estreitos e irregulares, nem com todo o tipo de mobiliário e equipamentos urbanos mal mantidos, mal instalados, ou transformados em obstáculos, que se convida as pessoas a estar nas ruas.
Nem sequer é tão só reduzindo a largura das vias automóveis ou limitando a velocidade do trânsito, que resolveremos este problema e transformaremos, de um dia para o outro, a nossa cidade caótica num espaço amigável para todos.
É preciso trabalhar para tornar isso possível! E muito! Porque está quase tudo por fazer.
Antes de mais, qualquer solução só poderá ser implementada de modo faseado, porque a grande maioria das nossas cidades têm um espaço público deplorável, por isso há que conhecer a cidade. Mas não um conhecimento qualquer. Não se trata de apenas saber onde fica o quê, ou qual o nome da rua tal ou o problema específico na rua x.
Não! É necessário um levantamento exaustivo da qualidade do seu espaço público, à luz do que sabemos ser uma cidade amigas das pessoas.
E aqui reside uma parte do problema! A maioria dos responsáveis, sejam técnicos ou políticos que gerem as nossas cidades, não sabem o que é uma cidade amiga das pessoas, uma que seja convidativa para andar a pé ou de bicicleta, pois, se soubessem, não as teríamos como atualmente as temos ou pelo menos já teríamos notado um esforço para a sua transformação, coisa que não vemos!
Deste modo, a criação de um ambiente democrático, inclusivo e amigo de todos, implica conhecimento à cabeça. Esse conhecimento obriga a saber o que se fez em outras cidades, outros lugares que já são amigos das pessoas e saber também que processos foram necessários implementar para chegar a tais resultados. Foi algo imposto? Foi participado pelos cidadãos? Foi um processo longo ou foi de rápida implementação?
Olhemos para o seguinte aspeto, coisa aparentemente simples.
O que é que se tem demonstrado mais eficaz para convidar ao uso da bicicleta nas deslocações diárias numa cidade?
Será que são medidas legais que punem os automobilistas, no que à falta de cuidado com os ciclistas diz respeito?
Será que são medidas de carácter obrigatório que forçam os ciclistas a usar capacete e ter licença para pedalar?
Será que são incentivos à compra de bicicleta? Será que apenas basta existirem lugares para estacionar a bicicleta, ou até que essas sejam fornecidas em sistema de bikesharing, sem que antes a cidade disponha da infraestrutura adequada para nela circular?
O que as evidências demonstram, um pouco por todo o mundo, é que ninguém usará uma bicicleta com a devida motivação, caso não existam as condições físicas para que tal aconteça!
E é isto! Não há outro caminho possível!
Por isso, quando me questionam no que à introdução da mobilidade suave no espaço de uma cidade diz respeito, a única resposta possível, suportada no conhecimento e na experiência de muitos outros lugares, é afirmar perentoriamente que, antes de mais, há que introduzir no espaço de uma cidade a infraestrutura para circular de bicicleta com a segurança e o conforto que todos merecemos. O resto acontecerá naturalmente!
Quer isto dizer que não devemos confundir os passeios para peões com locais onde seja aceitável andar de bicicleta. Mas também não quer dizer que aceitemos andar de bicicleta e ser passados de raspão pelos automóveis.
Sendo a bicicleta um meio de transporte no qual o utilizador está mais vulnerável, é também natural que as ciclovias sejam delimitadas por pinos, “forçando” os automobilistas a conservar a devida distância. Ou que sejam discriminados positivamente nos semáforos com alguns segundos de vantagem. Ou que exista aprendizagem nas escolas ou que também as possam levar nos transportes públicos ou sensibilizar os automobilistas. E algumas coisinhas mais… Nada de muito dispendioso, mas com resultados que garantem o sucesso da introdução deste meio de locomoção no espaço de uma cidade.
Porque só com conforto e segurança é que as pessoas, novos e velhos, pais e filhos, arriscarão andar de bicicleta na sua cidade.
O que as evidências também demonstram é que quaisquer medidas que obriguem o ciclista à utilização de um capacete ou a matricular a sua bicicleta, ou a ter que contrair um seguro contra terceiros, ou ver os percursos para bicicletas afastados para longe das pessoas e de onde a vida acontece, entre outras coisas, são claros desincentivos, levando à consequente redução do uso e à falência do sistema.
Além disso, viver na cidade usando a bicicleta aproxima-se de quem vive a cidade a pé. Sente-se os aromas enquanto pedalamos, encontramos os nossos amigos, paramos em qualquer lugar, compramos mais amiúde e, neste aspeto, também está demonstrado que a introdução deste meio de transporte é muito benéfico para o comércio local, não só levando ao aumento das visitas aos espaços comerciais, aumentando as vendas e, pelo maior lucro e interesse nesses espaços, à valorização dessas propriedades, das rendas, e por aí adiante.
Quem diria, tudo isto para uma coisa tão banal como seja uma bicicleta!
E ainda tem benefícios comprovados a muitos outros níveis, tais como na saúde das pessoas, na qualidade do ar, na consciencialização para a segurança dos outros, etc.
Mas, muito do que aqui referi, apenas aflora de modo muito ligeiro um dos aspetos de como vocacionar uma cidade para as pessoas, bem como alguns dos benefícios da existência de uma rede de ciclovias urbanas que convidem a população a uma utilização mais regular e em particular na maioria das suas deslocações diárias.
Para implementar uma rede destas, importa antes de mais conhecer a cidade, saber que locais se pretende interligar, ou de como fasear a instalação dessa rede, de maneira a que seja efetivamente utilizada e não condenada à partida.
Mas, voltando a uma questão anterior, o que fazer primeiro?
A infraestrutura, sem qualquer sombra de dúvida! Alguém se sentiria motivado a comprar um automóvel se não tivesse vias por onde conduzi-lo?
Muito mais haveria a dissertar sobre como fazer uma cidade amiga das pessoas, explorando-se aqui um dos aspetos para convidar a viver a cidade de bicicleta.
Uma cidade amiga das pessoas é, contudo, muito mais do que isso, abrangendo uma infinidade de dimensões, de situações e de soluções.
Por isso, não consigo deixar de me entristecer, quando, a propósito de como tornar uma cidade atrativa para os cidadãos, vejo que a falta de conhecimento faz outros reduzirem esta questão à mera velocidade automóvel, largura das vias ou dos passeios.
Uma cidade amiga das pessoas é muito mais que isso!
Autor: Miguel Caetano
Arquiteto
miguel.jcaetano@gmail.com