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Sul Informação

Quando Asterix se tornou vilão

Há algo de profundamente romântico na causa de Asterix e dos seus gauleses, contra o tirânico jugo dos romanos, invasores da sua pátria. É o símbolo da resistência, o símbolo do heroísmo. O próprio nome de Asterix, cujo significado é, grosso modo, estrela, apela à personificação da luz que orienta, da liderança.

A inspiração suscitada é tal, que facilmente atribuímos idênticas virtudes a outras causas, ainda que pouco ou nada tenham em comum.

Recentemente deu-se um acontecimento marcante no Algarve, que é também definidor de um regime político e de uma estrutura e forma de gestão da sociedade.

Um grupo de pessoas, residente na Ilha da Culatra, na Ria Formosa, em pleno Parque Natural, entendeu que a sua população necessitava de uma estrutura que permitisse a aterragem de um tipo específico de helicóptero para assistência em casos de emergência, já que os utilizados normalmente pelo Instituto Nacional de Emergência Médica, aterram onde for preciso, conforme esclarecimento desta entidade. Vai daí, lançou mãos a uma anunciada obra e construiu uma placa de betão armado de 70 toneladas, mais coisa, menos, coisa, para esse fim.

Ao fazê-lo, sem apresentar qualquer projecto ou pedir qualquer licença (muito menos obtê-la), violou reconhecidamente a lei, porque a área onde foi erigida a tal estrutura faz parte do Domínio Público Marítimo (de todos nós, portanto, à luz de uma lei que vem desde 1892), está integrada na Reserva Ecológica Nacional e é abrangida por um Sítio de Interesse Comunitário da Rede Natura 2000, para além de estar, como já referido, em pleno Parque Natural da Ria Formosa e ser ainda regulada pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira.

Isto para além de colocar um ponto de aterragem no movimentado corredor aéreo de aproximação ao Aeroporto Internacional de Faro, tudo indica, sem autorização do Instituto Nacional da Aviação Civil.

E a coisa fez-se em plena luz do dia, à vista de todos os que o quisessem ver, ou não tivesse inclusivamente sido celebrada com um evento de cariz popular, patuscada incluída. No entanto, não apenas nenhuma autoridade viu, como depois da bronca estoirar, passado todo este tempo, nada fez!

Pior ainda, os promotores da obra dizem que foram aconselhados por técnicos de entidades que tinham a obrigação de ter evitado a sua concretização, à luz da lei.

De resto, não fosse a Liga para a Protecção da Natureza ter levantado uma voz de protesto e alerta, e nenhuma brisa teria agitado as águas. Escusado será dizer que, como é tradição em Portugal, quem denuncia é quem leva na cabeça, e não quem viola a lei…

Não vou questionar a justiça ou pertinência da reivindicação desta população, até porque a questão global da Culatra é complexa, não cabendo aqui uma análise profunda e extensa. Pode até ser que a existência de uma estrutura como esta faça sentido e que haja necessidade, apesar de haver um conjunto de questões duvidosas, como o próprio INEM veio alertar.

O problema que está em causa é muito maior do que um heliporto, a Culatra, os culatrenses, as questões ambientais ou o ordenamento do território. Embora sejam esses os elementos mobilizadores de paixões, esqueçam-nos.

É um problema de Estado de Direito.

Os interesses privados têm sempre razão, vistos por quem os defende. É por isso que não vale a pena endemoninhar as gentes da Culatra. Eles tentam fazer valer as suas vontades, anseios e expectativas.

Mas como todos somos maus advogados em causa própria, por manifesta falta de isenção e idoneidade, tem que haver um elemento de ponderação.

O objectivo desse elemento de ponderação é impedir que os interesses privados, ou o seu somatório, lesem o interesse colectivo.

Para isso o Estado, que somos todos nós, criou a Administração, e conferiu-lhe poderes para estabelecer regras a que todos estão obrigados, para que a nossa convivência seja mais organizada e civilizada. De outra forma, seria a anarquia e a selvajaria, onde cada um faz o que bem entende, seja na Culatra ou em Cachopo.

Dessa organização derivam deveres e direitos.

A Culatra exige, com propriedade, direitos, mas nega os deveres, como por exemplo o de observar as leis. E é aqui que as histórias de Asterix, gauleses e Culatra se afastam irreversivelmente, para grande desgosto de todos aqueles que tentam justificar o injustificável com alegorias românticas. É que importa lembrar que, se Asterix e seus patrícios negavam a obediência para com a Pax Romana, não iam por outro lado pedir as benesses inerentes a essa condição.

Por isso mesmo, e apesar do momento de insatisfação generalizada e contestação ao Governo, há que manter o Norte, resistindo à tentação de ver em qualquer golpe de rebeldia um acto de justiça, sabendo discernir entre quem governa e aquilo que é governado.

É certo que a linha que separa a liberdade da libertinagem, neste País, há muito que está esfumada.

Mas a democracia não é isto. “O povo é quem mais ordena”, muitos louvaram. Mas fá-lo dentro de determinadas regras. O resto, volto a dizer, é anarquia, e implica que todos nós coloquemos uns cinturões de cartucheiras, e saiamos à rua de pistolas em riste, à boa moda do Velho Oeste, fazendo valer a lei do mais forte.

Democracia não é também ver autarcas e candidatos a tal a secundar ilegalidades ou com elas condescender. Muito menos que se proponham a legalizá-las – coisa que não existe na lei, havendo “apenas” lugar ao licenciamento de ilegalidades, com tudo o que de paradoxal e preocupante esse conceito encerra – na base da política de facto consumado.

Juntar à passividade a cumplicidade configura um estado terminal para a Administração Pública. É por isso que, mais do que a Culatra e as suas gentes, está em causa um princípio basilar do Estado de Direito.

A evolução deste caso vai agora demonstrar que tipo de banda desenhada caracteriza o nosso País.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

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