Em Portugal, só o vinho se reserva. Tudo o resto é relativo.
Em Portugal, nunca há tempo para pensar, para analisar, para reservar. É tudo de consumo imediato. E o resultado é visível: o estado catastrófico a que o Estado chegou.
O conceito de pronto-a-consumir alarga-se agora à Reserva Ecológica Nacional (REN).
No preâmbulo do diploma legal que criou a REN, em 1983 (pioneiro na Europa), lia-se que constituía o segundo passo na concretização de uma política de ordenamento à escala nacional. O primeiro havia sido dado no ano anterior, com a criação da Reserva Agrícola Nacional, cujo objectivo era a salvaguarda do solo agrícola, consagrando-o como valor patrimonial essencial à permanência da Nação.
A figura da REN, por sua vez, salvaguarda a estrutura biofísica necessária para que a exploração dos recursos e a utilização da paisagem se processe sem que ocorra a degradação das condições de que dependem a estabilidade e fertilidade das regiões, bem como a permanência de muitos dos seus valores económicos, sociais e culturais.
Simplificando, a REN assegura o funcionamento elementar da paisagem, a continuidade dos seus ciclos fundamentais. A sua interrupção, para além de constituir um factor de instabilidade e degradação ambiental, representa uma ameaça real à integridade de bens e, fundamentalmente, pessoas. Daí o seu entendimento como interesse público, imediato, concreto e de âmbito nacional.
Isto tornou-a, desde logo, alvo de difamação pelo sector da construção civil que, como se sabe, sempre foi obscura muleta da “política profissional”, seja lá o que for essa aberração. Isto porque o desconforto gerado pelo impedimento de betonar e asfaltar selvaticamente em quem banca toda esta estrutura ruinosa é incontornável. Patos-bravos, o sistema bancário que vive destes, o sistema político que é alimentado à mão pelos dois anteriores, todos olham de lado para a REN.
Muitos acham até que reserva é designação equívoca. A menos que a “açorda hortográfica” em vigor os possa ajudar, os cursos instantâneos ou por equivalência, bem como as baldas aos bancos de escola e a alergia ao dicionário cobram o seu preço…
Em linguagem de pato-bravo, a REN sempre foi sinónimo de entrave, estorvo, atraso, obstáculo, impedimento e outras boçalidades afins.
Conceitos como a prevenção da erosão costeira, dos riscos para pessoas e bens associados a inundações ou da salvaguarda da capacidade e qualidade de recarga dos aquíferos subterrâneos nunca entraram em ouvidos massacrados pela betoneira.
No entanto, e apenas a título de exemplo, quando mãos distraídas, ignorantes, ou de olhos convenientemente fechados, deixaram escapar licenciamentos de “maisons” em leitos de cheia de cursos de água, que efectivamente encheram, nunca ninguém se preocupou em ouvir essa espuma intelectual da nação…
É certo e assumido que a delimitação das áreas integradas na REN contém diversos erros, mas não é menos certo que os erros se corrigem, desde que haja vontade, e que os serviços técnicos sejam apetrechados de recursos materiais e humanos para esse efeito. Com capacidade e flexibilidade para o reconhecimento e rectificação de incongruências na sua delimitação, a maior parte dos erros de decisão associados à REN, e a má-vontade que isso gera junto do público, seria ultrapassada.
Revisões sucessivas, como a que foi recentemente anunciada pela Secretaria de Estado do Ambiente e do Ordenamento do Território, como quem não quer a coisa, em sentido único de facilitar e acelerar, não servem o interesse nacional. O que é estratégico deve ser pensado.
Note-se que nunca é agilizar. Isso implicaria que a REN, e as entidades responsáveis pela sua tutela, funcionassem de forma célere, articulada e segura, mas ainda assim que funcionassem.
O que é constantemente promovido é a ultrapassagem das entidades competentes e da aplicação do enquadramento legal, quer através do estrangulamento humano e material dos corpos técnicos dessas entidades, quer através do desmembramento da legislação (fragmentar e talvez entregar às autarquias), reduzindo-a a uma anedótica nota de rodapé, ou pró-forma para projecção de uma imagem não tão terceiro-mundista junto de países civilizados.
Mas ainda há quem não saiba porque estamos na cauda da Europa…
É como um sistema escolar onde, face à degradação da qualidade dos alunos, não se tenta melhorar a formação: simplesmente facilita-se a passagem, baixando o nível de exigência.
Ah, pois é… quase me esquecia de que também temos um desses…
As crises costumam ser encaradas como oportunidades de reinvenção e inovação, na procura de caminhos alternativos que possibilitem sair desse estado.
Em Portugal assiste-se a uma intolerável rendição à cupidez que nos trouxe até aqui, em nome dos interesses de poucos, para prejuízo de muitos.
Se ao menos esta pequenez atávica pagasse imposto, o défice há muito estava colmatado.
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)