…assim são os euros dos bolsos do povão.
No poema original, que é brutal e vergonhosamente aviltado por este vosso escriba no título deste texto, Camões colocava o sujeito poético a comparar a beleza da amada com a Natureza.
Há algum tempo foi discretamente anunciado algo semelhante, passe o exagero, na área da fiscalidade, nomeadamente através da intenção de tornar a carga fiscal portuguesa (que, como todos sabem e sentem, é modesta…) um pouco mais “verdejante”.
Para esse efeito, foi constituída uma comissão de dez especialistas, convidados pelo Governo, para estudar a reforma dos impostos ambientais, o que deverá acontecer até Setembro deste ano. No entanto, o processo é algo opaco, não havendo grandes novidades acerca do seu desenvolvimento.
Voltando ao poema, nele é referido que as ovelhas se mantêm do campo e da sua verdura bela, de pasto e ervas. Ora a generosa máquina fiscal portuguesa, qual gigantesco e lãzudo ovino, mantém-se também de pequenas partes de capim tributável, leia-se todos nós, dando-nos a oportunidade de sustentarmos uma Administração recordista em despesa, boa parte dela inútil.
Para tal tributa, mais coisa, menos coisa, basicamente tudo o que vê (é uma estrutura perfeccionista, que não gosta de esquecer nada), desde infra-estruturas que já pagámos vezes sem conta até, qualquer dia, ao ar que respiramos. Pena é que corrupção, incompetência e incúria não paguem imposto. Não apenas resolvíamos o défice, como podíamos acabar com a fome em África. E ainda tínhamos troco.
No entanto, como o “verde” é o novo preto (com o qual nunca me comprometo), esta máquina fiscal sente-se um pouco out e démodée, por ser pouco virada para as questões ambientais (estima-se que actualmente entre 9 e 10% das receitas fiscais provenham de tributação ambiental e energética). Vai daí esta abordagem à coloração dos impostos.
Se, por conceito, até é interessante uma reforma fiscal ambiental, a aplicação a la tuga destas coisas faz sempre ter um pé atrás…
Tradicionalmente (e pensando em países sérios), as reformas fiscais ambientais pretendem alcançar a relocalização da incidência fiscal (ou seja, onde se vai buscar dinheiro) e não o seu aumento ou alargamento. É portanto uma medida que pretende, normal e tendencialmente, aliviar a carga fiscal sobre os custos do trabalho (IRS, IRC, etc., etc.), incentivando a geração de emprego, ao mesmo tempo que se responsabiliza o desempenho ambiental de empresas e dos cidadãos.
Tanto mais que a ideia é que parte das receitas geradas por esta reorientação fiscal seja reinvestida na designada eco-inovação, nomeadamente em sistemas de melhoramento do desempenho ambiental da Economia, para além de servirem para reforçar o compromisso com as metas ambientais já definidas, seja ao nível de resíduos, tratamento de águas, emissões atmosféricas ou, porque não, ordenamento do território.
Este último aspecto é normalmente ignorado da discussão fiscal. Mas, num quadro de conflito gritante entre alterações climáticas e concentração massiva junto à costa (muita dela ilegal), de que as recentes aflições climatéricas são bons exemplos, talvez seja tempo de começar a pensar numa maior responsabilização de todos. Não apenas das entidades tutelares destas matérias, mas também daqueles que alegre e irresponsavelmente esquecem os seus deveres (concretamente o de auto-protecção) e apenas reclamam direitos – principalmente quando o idílico cenário de pezinhos na areia se converte na destruição e submersão da cabana junto à praia, e subitamente o sagrado direito privado se torna em encargo público, com milhões atirados ao mar, para adiar o inevitável.
Bem aplicada, esta reforma pode ser uma oportunidade de reforço da coesão social, através de uma mais justa distribuição da carga fiscal, associada a parâmetros de sustentabilidade, em que a Economia (gestão da casa global) funciona numa lógica de integração com a Ecologia (conhecimento da casa).
Importa é que não seja apenas um pretexto para nos afogar em mais uma panóplia de impostos adicionais, em nome do “crescimento verde”. Até porque, se é verde, e cresce, pode ser bolor…
Na fiscalidade há sempre inúmeras variáveis e questões a considerar, que seguramente farão as delícias dos especialistas na matéria. No entanto, é fundamental que nós, os contribuintes, consigamos identificar uma lógica, um objectivo e um princípio de equidade na carga fiscal. Da bondade e justiça destes pressupostos, bem como da correcção da aplicação do resultado da colecta, nasce o maior ou menor respeito da Sociedade e, subsequentemente, o seu cumprimento ou evasão. Afinal de contas, ou há moral, ou comem todos…
Numa última visita a Camões, o poema alerta: “Gados que pasceis/ Com contentamento,/ Vosso mantimento/ Não no entendereis;/ Isso que comeis/ Não são ervas, não”. Aos nossos legisladores e fiscalistas importa também fazer ver que a substância do seu apascentamento, mais do que erva, ou algo que cresça nas árvores, é algo que pesa bastante nas nossas vidas, pelo que merece respeito.
A menos que pertençamos ao restrito lote daqueles sobre quem prescrevem multas milionárias fictícias, e/ou que se enquadram sempre numa qualquer excepção ou em lapsos, seguramente inocentes e lamentáveis.
Mas para esse lote, talvez escolhesse outra poesia, provavelmente uma quadra de António Aleixo, que começa com “Sei que pareço um ladrão”…
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)