O modelo turístico a la betoneira não é novo no Algarve. Aliás, já muito se falou sobre isso, e de forma intensa e frequentemente acalorada, sem que grande resultado seja obtido, prevalecendo sempre mais do mesmo, ou seja, uma promiscuidade insustentável entre construção à bruta, jogadas imobiliárias, grupos bancários familiares e turismo. Neste caso, o último da lista é mesmo quem fica como o mexilhão.
E, entre o índice de desemprego na região, os amontoados de edifícios fantasmas durante 9 meses do ano, a quantidade de unidades hoteleiras às moscas e fechadas durante meses, ou o abandono de tudo o que são sectores produtivos levando à estéril monocultura económica, provas não faltam do quão estrondoso tem sido o sucesso da coisa.
Mas, de tempos a tempos, lá vem mais uma iniciativa peregrina (com fartura de betão, pois não podia ser de outra maneira), envolvido numa bruma de bacoco sebastianismo hoteleiro de “esta é que vai ser do camandro!”, e lá se instala o alucínio colectivo mais uma vez. Emprego para todos, um Ferrari à porta de cada algarvio/a, milhões, milhões e mais milhões. No fim, é o que se vê.
O próprio sector turístico, que todos os anos nos brinda com o choradinho das baixas taxas de ocupação, da falta de apoio ao sector (no Algarve, a sério? Caso não tenham reparado, há 40 anos que se destrói tudo o resto em nome do turismo…) e uma vitimização capaz de fazer chorar as pedras da calçada, não se defende minimamente.
Em vez de condenar a proliferação de unidades que apenas contribuem para a saturação da oferta e diminuição dos valores realmente identitários do Algarve, penalizando forçosamente a sua qualidade e o valor da mesma, bate palmas, numa perpetuamente renovada euforia néscia.
Não seria melhor optimizar o muito – e muito bom, em alguns casos – que já existe, articulando a oferta numa rede concertada e organizada, capaz de captar os diferentes segmentos?
Em casos de encontro entre a fome e a vontade de comer, pior ainda. O que é basicamente o que acontece no Núcleo de Desenvolvimento Turístico da Quinta da Rocha, na Ria de Alvor, que anda aí na berlinda.
Neste caso é um Município praticamente falido quem segue o flautista de Hamelin de vão de escada. Mas atenção que não falo apenas de falência financeira. Essa é preocupante, mas falo também de falência moral e ética, que é bem pior. Dinheiro, ainda há formas de arranjar. Já os valores… ou se tem, ou não se tem.
Como atenuante, sempre se dirá que é sabido que quando o carcanhol escasseia no bolso, a cabeça tende para o destempero.
Só assim se explica que à empresa que foi condenada (sentença transitada em julgado) pela Justiça, em Março de 2014, justamente pela destruição deliberada de valores naturais na Quinta da Rocha, seja permitido apresentar um plano de branqueamento e licenciamento da ilegalidade, pomposamente intitulado Programa de Acção Territorial (PAT). Só se for PAT-bravo…
Não há provavelmente nada de ilegal neste passo de ilusionismo, não posso, nem estou a afirmar o contrário. Mas, e peço desculpa por ser bota-de-elástico e insistir em coisas ultrapassadas, moral e eticamente correcto não é.
Levantam-se então todo o tipo de questões, entre as quais o existirem ou não mecanismos de defesa da Administração contra este tipo de travestismo de lobo em cordeiro, bem à vista de quem queira ver, e aonde nos conduzem tais processos de (des)ordenamento do território e de quebra do princípio da subsidiariedade.
Não que se conheça algum incómodo da parte de quem decide. O que suscita a inquietação acerca de ser este o tipo de comportamento que queremos por parte da nossa Administração em casos similares, e se é para isto que serve o mandato que depositamos nas mãos daqueles que elegemos.
Mesmo pensando que a coisa vem mascarada sob uma forma prostituída de Área de Paisagem Protegida Privada, com, imagine-se a inovação, dois hotéis e dois aldeamentos como forma de dinamização – tudo de natureza, muito eco-friendly e outros very nices que ficam bem em qualquer brochura. São 300 camas no total, não fosse alguém ter que acampar…
Eco, portanto, só se for o eco-funny, já que é para rir. Não porque turismo, edificação e conservação da natureza sejam conceptualmente incompatíveis, mas por partir de quem parte, pelo histórico e pelo próprio modelo adoptado.
É claro que podemos sempre optar por nos fazermos de parvos e ingénuos, crendo piamente que não tem o glúteo qualquer relação com a fazenda cortada e tecida em peça de vestuário.
Engana-me, que eu gosto…
Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP)
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)